Anatomia de um golpe
Em Brasília, o dia 12 de outubro de 1977 era feriado em homenagem a Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil e também era o dia da criança. O dia parecia calmo, com o “eixão”, a grande avenida que corta a capital, com o trânsito fechado para que as crianças pudessem brincar em segurança. Mas essa era uma falsa impressão. Não muito longe fali, no Palácio do Planalto, acontecia uma audiência entre o Presidente Ernesto Geisel e o ministro do Exército, gen. Sylvio Frota. Geisel era a favor de uma “abertura” do regime, ainda que “lenta, segura e gradual” e via no gen. Figueiredo, chefe do sistema de informações da época (SNI) o seu sucessor. Frota, ao contrário, defendia um “endurecimento” do regime e fazia campanha nos quartéis para ser ele o próximo presidente.
Nessa reunião, descrita pelo jornalista Elio Gaspari, no volume 4 (“A ditadura encurralada”), de sua brilhante trilogia “O sacerdote e o feiticeiro” (Intrínsica, 2014), teria ocorrido o seguinte diálogo: “- Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso, você é candidato a presidente e está em campanha. E não acho isso certo. Por isso, preciso que você peça demissão. – Eu não peço demissão, respondeu Frota. – Bem, então vou demiti-lo. O cargo de ministro é meu, e não deposito mais em você a confiança necessária para mantê-lo. Se você não pedir demissão, vou exonerá-lo”.
A primeira coisa que Frota fez, depois da conversa com Geisel, foi fazer uma reunião com o Alto Comando do Exército. Depois de informar aos presentes o teor da conversa com o presidente, Frota divulgou um manifesto em que acusava Geisel de complacência com a infiltração comunista e propaganda esquerdista, o que, segundo ele, colocaria em risco a “revolução”. Ele esperava apoio para derrubar Geisel, mas isso não aconteceu. O presidente já tinha tomado suas precauções – horas depois da audiência com Frota, já havia um novo comandante do Exército designado. Frota achava que uma única reunião do Alto Comando iria “emparedar” Geisel. Porém, não foi isso que aconteceu. Mal sabia ele que já tinha sido “emparedado” por Geisel.
Qualquer semelhança entre o episódio histórico descrito e o conflito entre o presidente Lula e o ministro do Exército, general Júlio César de Arruda, nomeado pelo ex-presidente Bolsonaro, não é mera coincidência. Antes de exonera-lo, Lula já havia escolhido seu substituto, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, comandante militar do Sudeste. O motivo de Lula trocar o comando do Exército foi o mesmo de Geisel: falta de confiança. Arruda havia sido, no mínimo, conivente com o acampamento golpista, armado em frente ao QG do Exército em Brasília, impedido a Polícia Militar de agir para desmobilizar e prender os terroristas na noite do “quebra-quebra” , além de recusar-se a substituir o ajudante de ordens de Bolsonaro (tenente-coronel Cid), que iria assumir o comando do Batalhão de Goiânia.
A primeira coisa que o general Arruda fez, após a sua demissão, foi reunir o Alto Comando. Tal como em 1977, não deu em nada. À sua maneira, Lula já havia “mexido os pauzinhos” para baixar a temperatura entre os militares e o Executivo. Sem o apoio dos militares, o golpe fracassou. O acampamento foi desmontado e mais de mil responsáveis pelos atos antidemocráticos, foram presos. Muitos dos “cabeças” da invasão dos Três Poderes ainda estão soltos e falta descobrir grande parte dos financiadores. O Judiciário trabalha em mutirão para reunir provas para punir os culpados. A ironia é que, em muitos casos, os próprios culpados produziram provas contra si mesmos nas redes sociais.
Acho que há pontos de semelhança entre o que aconteceu em 1977 e o momento atual. Talvez, sejam peças do mesmo “quebra-cabeças”. A primeira coisa é o discurso anticomunista, comum em ambos os momentos. A conivência de muitos chefes militares com o discurso golpista e a proteção aos acampamentos em frente aos quartéis, que pediam a volta dos militares ao poder, são fatos. Finalmente, há que registrar que muitos militares da reserva, cumplices do discurso golpista de Bolsonaro, também defendiam a “linha dura” de Sylvio Frota, O caso mais notório é o do general Augusto Heleno, que foi chefe de gabinete de Frota e ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), de Bolsonaro.
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