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Analfabetismo digital

Foto do escritor: José Maria Dias PereiraJosé Maria Dias Pereira



Springfield é uma cidadezinha do meio leste dos Estados Unidos, com cerca de 60 mil habitantes, localizada em Ohio, um dos 50 estados norte-americanos. Se não for por outro motivo, os leitores devem lembrar desse nome porque é lá que moram os “Simpsons” - personagens da famosa série de desenho animado da TV. Ohio é um dos chamados “estados pêndulos” das eleições americanas, ou seja, às vezes seus eleitores votam no partido Democrata; outras vezes nos Republicanos. Portanto, um estado decisivo na disputa presidencial. 


Tenho um pouco de familiaridade com Ohio pela convivência por vários anos com o estimado colega e querido amigo William (Bill) Carson, infelizmente já falecido. Bill era um “cidadão do mundo”, tanto que passou por vários países dando aulas de inglês, até encontrar uma brasileira que fazia o seu doutorado nos States, se apaixonar por ela e vir morar no Brasil até o resto de seus dias. Lembro nos nossos churrascos de domingo no seu sítio de Três Barras e da sua recorrente sugestão para eu assistir os noticiários da TV americana a fim de melhorar a minha pronúncia da língua inglesa. Tarefa que, confesso, fracassei. 


Qual a razão para, sem que houvesse nenhum motivo mais sério, Springfield ganhasse a primeira página dos jornais? O motivo foi uma informação falsa, divulgada pelo ex-presidente Donald Trump e outros “influenciadores digitais” nas redes sociais, de que imigrantes haitianos estariam roubando e comendo animais de estimação dos moradores da cidade. Mesmo com o desmentido das autoridades locais, Trump repetiu a mentira para milhões de telespectadores da rede ABC News, que assistiam, incrédulos, o debate entre ele e a Vice-presidente Kamala Harris. Não satisfeito, Trump ainda culpou os infelizes imigrantes como responsáveis por uma 3ª Guerra Mundial - outra invenção da cabeça dele.

 

Se, caro leitor, achou que esse era o golpe mais esdrúxulo e baixo da política que já assistiu, lamento informá-lo que ainda não viu tudo. No debate da TV Cultura, do último fim de semana, o apresentador J.L. Datena, candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo, não suportando mais às ofensas do empresário e “influencer” candidato Pablo Marçal, do minúsculo Partido PRTB (Partido Renovador Trabalhista Brasileiro), simplesmente partiu para a briga e jogou uma cadeira no adversário. O pior é que o episódio parece ter sido uma farsa, deliberadamente provocada pelo empresário-influencer em queda nas pesquisas, para mostrar nas suas redes sociais. 

 

Esses dois exemplos servem para ilustrar a observação do que um estudioso (Neil Postman) de mídias, lá atrás (1985), chamou de “rebaixamento do discurso político pela televisão”, ou seja, o noticiário havia adquirido muitas das características do entretenimento.  Segundo ele, o telespectador agora não precisa prestar mais a atenção do que apenas alguns segundos, de cada vez, na notícia. Três décadas depois, a notícia na internet obedece ao mesmo critério: mesmo veículos considerados sérios preenchem suas páginas iniciais com manchetes breves e provocativas. A maioria deles não publica matérias longas e reflexivas, preferindo vídeos curtos e superficiais.  


Por que os noticiários da internet, assim como os da TV, preferem a brevidade e a novidade às análises mais aprofundadas? Da mesma forma, clicamos em dezenas de manchetes sedutoras que nos levam a vídeos de gatinhos e pulamos o longo texto de assistência à saúde, embora informar-se sobre a saúde seja mais importante para a nossa vida do que o “joguinho do tigrinho”.  


Não há uma resposta clara onde tudo isso vai nos levar. Provavelmente, não ao jornalismo de formato longo, como era no passado. Existem iniciativas, como a da Folha de São Paulo que pretende, através de mudança no formato visual, aumentar o texto impresso.  Mas não parece ser uma tendência da mídia impressa ou digital em geral. À medida que histórias curtas e superficiais dominam o ambiente das redações, as notícias precisam ficar ainda mais curtas e superficiais para competir com outros veículos. 


 Mesmo palavras podem não ser tão fundamentais, já que a maioria dos smartfones oferece um meio rápido e simples de chamar a atenção: um emoji (bonecos com carinhas tristes ou felizes). A própria qualidade do texto passa para um segundo plano, escondida pela propaganda. Como o leitor pode se concentrar numa leitura de um artigo em formato digital, interrompida seis ou sete vezes por material publicitário inserido no próprio texto? Quando chegar ao final, talvez nem lembre mais do assunto! 


A preocupação com a incapacidade de escrita dos alunos estimulou a criação da prova de redação nos vestibulares. Até então, bastava colocar uma “cruzinha” no local da resposta e pronto! Não resolveu. Agora, existem aplicativos que escrevem um artigo, sobre qualquer assunto, simplesmente reorganizando parágrafos de artigos já publicados, sem risco nenhum de acusação de plágio. Neste caso, pessoas que fazem o que eu faço não seriam mais necessárias. Enquanto isso não acontece, talvez por pura teimosia, insisto na escrita.  


Avalio como uma grande perda para a nossa cultura, o país não produzir textos para jornais como os de Carlos Heitor Cony, Nelson Rodrigues, Paulo Francis, Arnaldo Jabor, Rui Castro (recentemente, aceito na ABL), Nelson Mota, Moacir Scliar, dentre outros. Quanto aos leitores, paradoxalmente, estamos trocando os “analfabetos funcionais” (aqueles que leem, sem entender) do papel por “analfabetos digitais” (aqueles que não leem porque só olham a foto) da internet.  

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