Ainda Estou Aqui
Não há dúvida quanto ao fato de que o filme Ainda Estou Aqui venha emocionando corações e mentes, onde quer que tenha sido exibido. Fenômeno de bilheteria no país, tendo já alcançado a marca de 3,5 milhões de expectadores, o filme quebra paradigmas e faz uma carreira brilhante também no exterior, tendo arrebatado inclusive um “Globo de Ouro” de melhor atriz para Fernanda Torres, que interpreta Eunice – personagem central da trama – deixando para trás as favoritas a ganhar o prêmio. O filme é dirigido por Walter Salles e tem ainda Selton Melo no elenco, no papel do ex-deputado Ruben Paiva, morto pela ditadura militar. O filme ainda está indicado ao “Oscar”, em três categorias, inclusive a de melhor filme e atriz.
Há exageros, claro. Tem gente que compara ganhar o “Oscar” melhor que ganhar a Copa do Mundo de futebol. Tem, como sempre, aqueles que “não viram” (o filme) e não gostaram. Outros, se prendem a detalhes, como o vestido ou o inglês fluente de Fernandinha, e menos ao seu (excepcional) desempenho. O sucesso não veio de graça. Filha de Fernanda Montenegro e Fernando Torres, ela chegou ao topo da carreira aos 59 anos.
Um amigo torceu o nariz e disse que não gosta de filmes brasileiros de grande orçamento, preferindo filmes mais de autoria. A indiscutível qualidade técnica foi vista por outros como “um filme visando a exportação”, ao contrário do filme “Central do Brasil”, do mesmo diretor, destinado tanto a públicos externos quanto internos. Neste caso, o contraste entre o Brasil urbano e o do interior do país é evidente, assim como a realidade social em que estão mergulhados a personagem que escreve cartas (Fernanda Montenegro) para analfabetos e o menino que sonha em encontrar o pai.
Talvez o ponto mais incompreendido do filme é o seu enfoque sobre os “anos de chumbo” da ditadura. A não centralidade do enredo em torno da tortura, luta armada ou sequestros é o ponto mais criticado do filme. A opção do diretor, a meu ver, foi de caso pensado. A ditadura é apenas um “pano de fundo”, onde o foco é a família do desaparecido político após a sua prisão e a sua “peregrinação” para achar o seu paradeiro, cujo corpo até hoje nunca foi encontrado.
O filme irá frustrar aqueles que esperavam um “ajuste de contas” com a ditadura, ou seja, um posicionamento político de esquerda ou uma punição para os culpados. Exceto neste último caso, a visão de esquerda já está disponível em diversos filmes, tais como “O que é isso companheiro”, baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira, “Lúcio Flávio – o passageiro da agonia, ou o recente “Mariguella”, baseado no livro de Mário Magalhães.
Confesso que, quando li a sinopse, achei que – por retratar um tema de particular interesse aos brasileiros – o filme não faria carreira internacional (no que, obviamente, estava enganado). Esqueci que golpes militares foram mais regra do que exceção na América Latina, tendo ocorrido no Chile, na Argentina, no Uruguai, etc. No caso do Chile, existe um filme (“Estado de Sítio”), amplamente conhecido.
Na minha opinião, o olhar micro (no sofrimento da família do desaparecido) ao invés do olhar macro (no sofrimento da sociedade como um todo) é a espinha dorsal do filme. Sobre as razões do seu sucesso, não é difícil construir uma teoria da conspiração, como a do meu amigo, que classifica os filmes que vê pelo orçamento da produção. “Ainda Estou Aqui” é a primeira produção de streaming da Globoplay e Walter Salles (herdeiro do Itaú-Unibanco) é um dos homens mais ricos do Brasil. Isso lhe diz alguma coisa? O filme “pegou leve” porque poderia atingir a Globo, que colaborou com a ditadura. Bobagem. O diretor é o mesmo de “Central do Brasil”, onde a crítica social está em evidência.
O mais importante do filme foi relembrar o medo e a falta de liberdade de expressão na época da ditadura militar no Brasil. Esse risco, infelizmente, todos continuamos a correr. E não é só mais uma "teoria da conspiração", como ficou evidenciando com a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Os mandantes (33 pessoas do alto escalão militar, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro) acabaram de ser denunciados pelo Procurador Geral da República. Resta aguardar o que acontecerá com militares que tentaram dar o golpe em 2023. Se haverá, após o devido processo legal, punição ou se será apenas uma repetição do ocorrido entre 1964-1985, que até hoje ninguém foi denunciado ou punido.
Opmerkingen