A medicina como negócio
- José Maria Dias Pereira
- há 2 dias
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Atualizado: há 1 dia
Em menos de dois anos, o MEC (Ministério da Educação) aprovou a abertura de 77 novos cursos de medicina no país, que, juntos, passaram a ofertar 4.412 vagas de graduação, mostra estudo inédito da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), publicado pela Folha de São Paulo. No mesmo período, 20 cursos de medicina já em funcionamento foram autorizados pelo MEC a aumentar o número de vagas, somando outras 1.049, o que totaliza 5.461 vagas, de janeiro de 2024 a setembro deste ano.
A partir do programa Mais Médicos, o número de vagas dobrou, passando de 23 mil, em 2014, para mais de 50 mil neste ano. Com o atual número, a projeção é que em 2030 o país tenha 1,2 milhão de médicos — 5,3 por mil habitantes, quase o dobro da taxa atual, de 2,98 por mil. Com isso, o Brasil atingiu neste ano a marca de 494 cursos de medicina, 80% deles privados, com um total de 50.974 vagas de graduação. É o segundo país do mundo com maior número de escolas médicas, só perdendo para a Índia (cerca de 600), país com mais de 1,4 bilhão de habitantes —o Brasil tem 213 milhões, segundo o IBGE.
Além dos cursos já autorizados, há outros 150 processos com novos pedidos de abertura ainda em análise pelo MEC. Setenta e cinco processos que pediam a abertura dos cursos foram indeferidos. Nenhum país do mundo passou por uma expansão de vagas tão acelerada na última década como o Brasil.
Essa expansão desordenada dos cursos de medicina levou o médico Rodolfo Damiano, psiquiatra, doutor e pós-doutorado em psiquiatria pela USP, a escrever um excelente artigo na Folha de São Paulo (“A medicina como negócio”), que passo a resumir na sequência. Nesse texto, faz uma inquietante pergunta: a medicina está deixando de ser uma ciência? Não. A medicina sempre foi e sempre será uma ciência, diz ele, de modo que a pergunta não faz sentido.
Vivemos tempos de pensamento mágico disfarçado de ciência, critica o articulista. O mecanismo é sempre o mesmo: descobre-se que determinada substância, originalmente desenvolvida para tratar uma doença específica, mostrou em estudos preliminares algum efeito interessante. No dia seguinte, médicos já estão prescrevendo essa substância para pacientes saudáveis.
A minissérie “O Império da Dor” (Netflix) conta os detalhes sobre a origem da crise do vício em opioides nos Estados Unidos, que se tornou uma grande preocupação para a saúde da população. Nos últimos anos, medicamentos foram prescritos de forma generalizada, gerando pacientes com dependência. Segundo a ética utilitarista as pessoas buscam o máximo de prazer e o mínimo de dor. Isso parece ter se refletido na ideia da indústria farmacêutica americana.
Mas por que alguns médicos estão abraçando esse tipo de prática? A resposta é incômoda: porque funciona como negócio. Pacientes querem soluções rápidas, e médicos descobriram que é mais lucrativo vender certezas do que admitir incertezas. O curioso é que muitos desses profissionais dominam a arte da comunicação. Sabem ouvir, criam ambientes acolhedores, dedicam tempo às consultas, cobram valores exorbitantes. Desenvolveram todas as habilidades necessárias para o sucesso comercial.
Essa transformação não aconteceu da noite para o dia. Foi um processo gradual, alimentado por múltiplos fatores. Faculdades de medicina que não ensinam adequadamente o método científico. Cursos de "atualização" que são, na verdade, aulas de marketing médico. A pressão de um mercado que valoriza mais o líder de opinião digital do que o verdadeiro especialista. E, talvez o mais preocupante, uma formação que não prepara os profissionais para lidar com a incerteza —elemento fundamental da medicina honesta.
A mercantilização da medicina, acrescento eu, começa antes mesmo do ingresso na universidade, onde a elevada concentração da renda no país só permite que jovens da classe alta (ou beneficiados com financiamento do governo) frequentem o curso. Sendo que 80% dos cursos de medicina são ofertados por instituições privadas, mensalidades ao redor de 10 mil reais, ou até mais, são a principal fonte de lucro desse setor educacional. Isso explica inclusive o alto preço das consultas, uma forma de recuperar o chamado “Investimento em educação”.
O resultado? É o paradoxo em que mais e mais médicos estão sendo formados, mas a maioria da população é carente de condições básicas de saúde, sobretudo do atendimento médico especializado. O recente programa do governo, Mais Médicos Especialistas, é uma tentativa de desafogar o Sistema Único de Saúde (SUS), um modelo inclusive copiado por outros países, mas que não dá conta da elevada demanda por serviços de saúde do país. O que é pior: não ter médicos ou ter médicos mal formados? No final, estamos diante de um dilema que o governo precisará resolver sem perda de tempo, pois nada é mais importante do que a saúde da população.
DIÁRIO DE SMA (impresso), edição de quarta-feira (15/10/2025)
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