Três caracteres
O escritor Rui Castro, membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu, na sua coluna na Folha de São Paulo, que o fatídico dia 8 de janeiro de 2023 deveria ser transformado em feriado nacional, para jamais ser esquecido o perigo por que passou a nossa democracia. Como os espaços nas colunas dos jornais são limitados, Rui sugere que os colunistas deveriam referir-se à data com apenas três caracteres: 8/1. O jornalista Elio Gaspari, que escreveu cinco livros sobre a ditadura militar, teve o trabalho de cronometrar um “passo-a-passo” daquele dia e concluiu que o ato golpista, para ter sucesso, dependia também de três caracteres – uma GLO (decreto de Garantia da Lei e da Ordem). Era a “deixa” para convencer os militares a “entrar no jogo” da liderança golpista. Lula não mordeu a isca e “a casa caiu” para os conspiradores.
Transcrevo, de forma literal, o “passo-a-passo” do brilhante jornalista, no artigo “O golpe sonhava com o caos e uma GLO” (Folha, 30/12/2023).
O 8 de janeiro de 2023 buscava o caos para obter um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), colocando tropas na rua, sob o comando de algum militar. Uma semana depois da posse de Lula, a insurreição precisava da desordem. Nas mensagens trocadas nos dias que antecederam os ataques, falava-se em bloqueios de estradas, paralisação de refinarias e, finalmente, a ‘Festa da Selma’, com a invasão do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo em Brasília. Passado um ano, sabe-se que às 17h50 daquele domingo, tropas de choque da PM, policiais do Supremo Tribunal, da PF e do Congresso, com a participação tardia de efetivos do Exército, já haviam desocupado o STF e começavam a expulsar os invasores do Planalto e do Congresso.
Às 17h53 da véspera, um sábado, organizava-se em redes sociais a "Festa da Selma", com um aviso: "O QG de Brasília é apenas para hospedagem e concentração de convidados que estão chegando. [Referência ao acampamento de 3.000 pessoas montado em frente ao quartel-general do Exército.] É lá que vai ser combinado o horário e a data para a Festa da Selma. A festa não é no QG."
Uma hora depois, o diretor da Polícia Federal, alertou o ministro da Justiça, Flávio Dino, para a afluência de caravanas de ônibus trazendo manifestantes. Dino alertou o governador do DF, Ibaneis Rocha. O governador do Distrito Federal já estava comprometido com as lideranças dos manifestantes e liberou a Esplanada dos Ministérios para manifestações. Na mesma noite da manifestação, Ibaneis seria afastado do cargo, pelo ministro Alexandre de Moraes, por omissão. Não chegou a ser preso e já retornou ao cargo.
Às 8h56, do dia 8, o diretor da Abin comunicou ao general Gonçalves Dias, chefe do Gabinete Institucional, que haviam chegado à cidade 105 ônibus. A essa altura circulavam nas redes centenas de mensagens programando a Festa da Selma: "É faxina geral, nos três Poderes".
Às 8h50 a Abin informou que, "após discussão acalorada entre acampados, ficou decidido que os manifestantes partirão em marcha para a Esplanada às 13h". Às 9h30 uma mensagem avisava: "Não vão invadir nada a não ser na hora certa de comer bolo da festa da Selma". Meia hora depois: "Foco, galera. Tomar a praça dos Três Poderes. [...] Tomar o STF, o Planalto e o Congresso.
Como estava anunciado, às 13h, a marcha saiu do acampamento em frente ao QG do Exército. Numa operação sincronizada, a marcha "pacífica e ordeira" dividiu-se. Entre as 14h45 e as 15h40, rompeu as barreiras do Congresso, do Planalto e do Supremo Tribunal. O festim durou cerca de duas horas. No Congresso, chegaram ao Salão Verde. No Supremo, barbarizaram o plenário. No Planalto, destruíram móveis. O relógio francês de dom João 6º foi derrubado às 15h33, recolocado no lugar às 15h43 e derrubado de novo às 16h12. Só às 16h40, a tropa do Planalto começou a desocupar os andares invadidos. Vinte minutos depois, o choque da PM concluiu a retomada do palácio.
O 8 de janeiro foi vasculhado pelo Judiciário e investigado pelo Congresso. O ministro Alexandre de Moraes encarcerou centenas de pessoas que fizeram o que não deviam. São poucos, contudo, aqueles que foram responsabilizados por não terem feito o que deviam. Imagens e depoimentos em documentários mostram que a maioria das autoridades responsáveis pela segurança estavam almoçando tranquilamente com familiares ou fora da Brasília (caso de Lula, que estava no interior paulista). Os chefes militares, que se recusaram a cumprir ordens superiores para esvaziar o acampamento naquela noite, simplesmente foram afastados dos cargos. Um sábio deve ter convencido Lula de que é “melhor não cutucar a onça com vara curta”.
Mas não acho que o perigo tenha sido afastado. Pesquisa recente do Datafolha mostra que a rejeição a Lula, praticamente, permanece a mesma de quando eleito presidente. Ou seja, um ano depois, quase metade dos eleitores não gosta de Lula, embora o seu desempenho (em termos de indicadores econômicos) seja melhor do que o esperado. Ser “contra” apenas por “teimosia” impede o diálogo democrático. Enquanto permanecer a atual polarização política, não dá para falar em “democracia inabalada” ou “pacificação nacional”. Alguém já disse que o “preço da liberdade é a eterna vigilância”.
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