Rasgando a Constituição
“Quem rasga a Constituição em um dia no outro rasgará direitos”, disse o economista José Serra – o único Senador a votar contra a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do “estado de emergência”. A PEC tem sido criticada por juristas por ser inconstitucional e que o melhor caminho é o seu questionamento, antes das eleições, junto ao STF (Supremo Tribunal Federal). Neste caso, haveria um desvio de finalidade. Segundo o Wikipédia, um governo pode declarar estado de emergência apenas em resposta a desastres naturais ou causados pelo homem, períodos de desordem civil ou situações de conflitos armados. Mas, o mais importante. É que o “estado de emergência também pode ser usado como razão (ou pretexto) para suspender direitos e liberdades garantidas pela Constituição”.
Obviamente, nenhuma das situações citadas se encontra presente no Brasil atual. A pandemia do Covid está sob controle há meses e não é mais uma “emergência”. No período mais crítico, inclusive foi aprovado um “orçamento de guerra” pelo Congresso, sem necessidade de mexer na Constituição. A invasão da Ucrânia já dura cerca de quatro meses e também não é o caso. Não me entendam mal: não sou contra aumentar o Auxílio Brasil (ou Bolsa Família) para R$ 600; sou contra rasgar a constituição, através de uma PEC, para fazer isso. Em princípio, como esse programa social já existe, não haveria problema em aumentar o valor (justificável por causa da inflação que corrói a renda dos mais pobres).
O mesmo não se aplica à criação de programas novos proposta pela PEC, tais como o auxílio (de R$ 1.000) aos caminhoneiros, taxistas, vale gás integral, etc.), que entram em choque com a lei eleitoral que proíbe conceder benefícios a pessoas físicas em ano eleitoral – a não ser em casos extremos, como os já citados. A aprovação da PEC, à “toque-de-caixa”, é claramente uma afronta à Constituição. Sinaliza que, daqui para a frente, qualquer governante que quiser se reeleger, pode “fabricar” um estado de emergência e rasgar a nossa Carta Magna. E, “de quebra”, provocar um rombo fiscal de R$ 41 bilhões que cairá “no colo” do próximo Presidente, caso o atual não consiga se reeleger. Esse recurso não precisará observar o teto de gastos ou a Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso sim que é “pedalada fiscal” para ninguém botar defeito!
A Constituição brasileira, aprovada em 1988, é a segunda maior do mundo (só superada, em tamanho, pela Constituição indiana) e foi modificada 111 vezes (até setembro de 2021) em apenas 34 anos de existência. A título de comparação, a Constituição dos Estados Unidos, aprovada no estado da Filadélfia em 1787 (entrou em vigor em 1789), é a mais curta do mundo, possuindo apenas 7 artigos e nela foram feitas 27 emendas em 235 anos.
Na pressa por aprovar o texto da PEC, os senadores de oposição – que votaram em bloco com o governo – só perceberam a armadilha do estado de emergência quando a Emenda já tinha passado no plenário. Tentaram mudar o nome para “estado de emergência dos combustíveis”, mas faltou assinaturas. Deixaram por isso mesmo. Todos se justificaram pelo aumento da pobreza, como se o problema tivesse surgido agora. Não fosse a hipocrisia, teriam falado a verdade: às favas a ética; em ano eleitoral, só interessa ganhar votos.
Pensando apenas na própria sorte e, com medo de perder votos, os políticos (inclusive da oposição) fingiram não perceber a manobra eleitoreira de Bolsonaro e deixaram passar o risco maior que a PEC 1/2022 representa para a democracia brasileira: o "estado de emergência". Esse instrumento jurídico poderá ser utilizado, pelos antidemocratas, como pretexto para suspender direitos e liberdades individuais garantidos pela nossa Constituição. Não é de hoje que o presidente Bolsonaro ataca o Judiciário brasileiro, com segundas intenções. Para ele, a democracia só vale se ganhar a eleição; se perder, ameaça não respeitar o resultado. De forma oportunista, o Legislativo lhe deu o instrumento constitucional (o estado de emergência) para quebrar a regra do jogo. E, quem sabe, um pretexto para intervenção militar.
Em tempo: quando terminei este artigo (7/7/2022), o presidente da Câmara (Arthur Lira), com medo de não conseguir os 308 votos necessários, transferiu a sessão. Antes disso já tinha acontecido algo absurdo: a sessão foi aberta no plenário às 6:30 e fechada às 6:31 da manhã, sem que ninguém abrisse a boca. Isso é democracia? Sério! E ainda tem gente que se ofende com a imagem, no estrangeiro, de que o Brasil não é um país sério. Exemplos como esse só reforçam essa imagem negativa.
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