Os 200 anos da Independência
Um best-seller na nossa historiografia, repleto de curiosidades, cujo título é a própria data da Independência, de autoria do jornalista paranaense Laurentino Gomes, começa descrevendo uma situação embaraçosa vivida pelo Imperador Pedro I, ao dar o famoso grito do Ipiranga. O príncipe regente e sua comitiva se encontravam às margens do riacho do mesmo nome, em território paulista, local onde haviam parado em razão de uma dor de barriga que obrigara Pedro I a descer apressado da sua montaria. Lá teria se encontrado com emissários portadores da notícia de que as cortes portuguesas ameaçavam fazer regredir o Brasil à condição de “Colônia”. Vale lembrar que, desde a vinda da família real, o Brasil havia sido alçado à condição de “Reino Unido” a Portugal.
O fato de o Príncipe estar com dor de barriga não tem nenhuma importância, exceto pelo interesse que a história contada, na forma de narrativa jornalística, despertou nos leitores (assim como 1808 e 1889, títulos do mesmo autor). Importante é dizer como era o país naquela época. Em 1822, o Brasil possuía 4,5 milhões de habitantes, sendo 90% da população analfabeta. De cada três brasileiros, dois eram escravos. Embora, nos 13 anos que a família real permaneceu no Brasil, tenha havido vários benefícios – como a abertura dos portos (que beneficiava sobretudo a Inglaterra), a fundação do Banco do Brasil, da primeira faculdade de medicina (em Salvador), e o próprio surgimento da imprensa (proibida até 1808).
O país era uma economia agrária atrasada, dominada pelo latifúndio, pelo tráfico de escravos e dependente de quase tudo do estrangeiro. Ainda por cima, ao voltar para Portugal (em 1821), Dom João VI “limpou” os cofres nacionais e “quebrou” o Banco do Brasil que havia fundado. No filme “Carlota Joaquina”, a diretora Carla Camurati faz uma sátira do desprezo da corte de Dom João VI em relação ao Brasil, e da pressa em voltar logo para a Europa, de onde saíram, a contragosto (fugindo da invasão francesa). Esqueceram de reconhecer que, não fosse a riqueza da ex-colônia, Portugal não teria sobrevivido em meio às potências europeias.
O que mudou no Brasil, naquela época, com a decretação da independência de Portugal? Do ponto de vista econômico, muito pouca coisa. No meu livro Manual de Economia Brasileira – da formação econômica à economia contemporânea (editora UFSM), abordo esse assunto. Há quem diga que, a partir dessa data, oficialmente, o Brasil deixou de ser colônia de Portugal e passou a ser colônia da Inglaterra. É bem provável, porque os produtos ingleses tinham tarifas mais baixas do que os oriundos de Portugal, nos portos brasileiros. Embora, antes da Independência, Lisboa fosse apenas uma espécie de entreposto comercial, por onde passavam os produtos brasileiros antes de chegar à Inglaterra (inclusive o ouro).
Nesse terreno, caberia perguntar por que as ideias liberais não tiveram penetração no Brasil como nos Estados Unidos? A tese predominante, de Celso Furtado, é que, à exceção do Visconde de Cairu, não havia sequer uma classe de comerciantes de importância que pudesse se interessar pela indústria. Uma outra versão (do historiador João Fragoso, no livro Homens de grossa aventura) acredita já existir uma classe de comerciantes que controlava o crédito e o abastecimento e tráfico de escravos e foram esses homens – e não os grandes proprietários de terras – que financiaram a Independência. Por quê esses comerciantes com recursos não investiram na indústria? Simplesmente, porque o uso do trabalho escravo tornava mais lucrativo o investimento na agricultura.
Dois séculos nos separam do famoso grito “independência ou morte”, de 7/9/1822. O gesto foi mais simbólico, já que, na prática, o modelo econômico escravocrata resistiria por várias décadas. Pedro I governaria o Brasil até 1831, ano que abdicou em favor do filho Dom Pedro II, que seria preparado pelo tutor José Bonifácio, nomeado pelo pai, para assumir o trono aos 14 anos de idade. Homem culto, mas desinteressado pela política, Pedro II reinaria por quase meio século, de 1840 a 1889, quando foi proclamada a República. Já Pedro I, assumiu o trono português com o nome de Pedro IV e faleceu em 1834, com a saúde debilitada pela guerra civil contra o irmão Miguel, que ambicionava apossar-se da Coroa portuguesa. Seu corpo foi transladado (em 1972) para o Brasil, porém o coração, como era seu desejo, permanece trancado numa igreja na cidade do Porto. Cercado de todo cuidado, o órgão foi trazido ao Brasil para as comemorações do bicentenário da Independência.
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