O relógio
Atualizado: 27 de jan. de 2023
Em novembro de 1807, com as tropas de Napoleão próximas de Lisboa, o rei de Portugal, D. João VI, e sua corte de cerca de 10 mil pessoas, apressavam-se para colocar seus pertences nas caravelas que partiriam para o Brasil naquela madrugada. A hipótese de resistir à invasão francesa sequer foi cogitada pelo rei, que optou por fugir. Como “não existe jantar grátis”, o monarca pagaria um alto preço pela escolha de aliar-se à Inglaterra. Mas, esse assunto, não vem ao caso agora.
O fato é que, sem saber quando poderia voltar à pátria (o que só aconteceu em julho de 1821), D. João VI, primeiro limpou os cofres do país (o mesmo aconteceria na volta do Brasil), e depois juntou todos os objetos de valor que pudesse carregar. Dentre eles, uma raridade: um relógio do séc. 17, fabricado pelo relojoeiro do rei francês Luís 14. Atualmente, existiam apenas dois relógios desse autor, sendo um no palácio de Versalhes, na França, e o outro, no 3º andar do Palácio do Planalto, próximo ao gabinete do presidente da República. Como se sabe, este último foi destruído, por um extremista bolsonarista, na invasão aos prédios públicos no último dia 8 do corrente. A ação, gravada pelas câmeras do palácio, serve para ilustrar o delicado momento político que vive o país.
O que chama a atenção, no caso do relógio, primeiro, é o gesto selvagem da destruição. Segundo, e mais grave, a representação da impossibilidade de diálogo com pessoas desse tipo, ou que concordam com esse gesto e, sobretudo, aqueles que patrocinaram ações golpistas. Em princípio, bastaria investigar e punir os culpados. Seria, simplesmente, “separar o joio do trigo”. Mas, não é tão fácil. Não são apenas os inocentes úteis, alimentados por notícias falsas, que é preciso convencer a voltar à razão. Fruto da ignorância e desinformação, eles vivem uma realidade paralela. Esses deverão ser alvos de uma difícil, porém necessária, reconciliação nacional. Se e quando isso vai acontecer irá depender do êxito das políticas sociais prometidas por Lula, as quais, por sua vez, são dependentes da aceleração do crescimento. No bolo imaginário do PIB, a soma das partes não pode ser maior do que o todo, sob pena de aumento da dívida pública ou dos impostos.
Antes, porém, de chegar a fase do debate de visões políticas divergentes – de difícil conciliação, por causa da pequena diferença de votos no segundo turno da eleição presidencial – é preciso punir os culpados pelo golpe antidemocrático: os autores de notícias falsas, os financiadores e aqueles que protegeram os golpistas. É preciso “cortar o mal pela raiz”. Bolsonaro, mesmo fora do país, continua sendo uma ameaça à nossa democracia. Daí a importância de afastá-lo da cena política, no mínimo, tornando-o inelegível, sem prejuízo da punição em diversos processos de que é réu (inclusive o de propagador de notícias falsas).
Alguém poderá dizer que a democracia pressupõe “liberdade de expressão”, o que é a mais pura verdade. Porém, ela não pode existir para quem quer acabar com a própria democracia. Daí porque a punição dos responsáveis, sejam eles quais forem, é educativa. Apossar-se de símbolos nacionais, como a bandeira, não é novidade: todos os regimes fascistas já fizeram isso. Aguçar o nacionalismo também. Isso não dá a alguém o direito de ser mais “patriota” do que os demais.
O vandalismo no Palácio do Planalto, Congresso e Supremo chamaram a atenção para um fator preocupante – a politização das instituições “de Estado”, como a polícia federal, as polícias militares e as forças armadas. Cabe destacar o acampamento em frente ao QG de Brasília, por onde passaram todos os terroristas que armaram bombas e incendiaram carros e o prédio da PF, no dia da diplomação de Lula. A própria polícia militar do DF teria sido impedida pelo Exército de desmobilizar esse acampamento. E, ainda na própria noite que ocorreu o “quebra-quebra”, o Exército teria feito um cordão de isolamento do acampamento, com o uso de tanques e tropas, só permitindo a retirada dos manifestantes na manhã do dia seguinte. Isso favoreceu a fuga dos principais “cabeças” do movimento.
A politização das FA foi uma herança deixada por Bolsonaro que Lula terá de administrar com cuidado. Porém, para aqueles que acharam que ele iria se intimidar, a demissão do comandante do Exército (e do QJ de Brasília também) prova o contrário. A exoneração de militares, em cargos de segurança da Presidência, segue o mesmo caminho. Mas o número de militares da ativa que Bolsonaro levou para cargos no governo, segundo a imprensa, está por volta de 8 mil. E, na maioria dos cargos, não foram selecionados por sua capacidade para exercer a função. Pelo contrário. O maior exemplo foi a gestão catastrófica do general Pazuello, no Ministério da Saúde, durante a pandemia. Aparentemente, Bolsonaro esperava contar com a ajuda deles para dar um possível golpe, caso contasse com o apoio das FA.
A desmilitarização do governo e a despolitização dos militares será a questão mais difícil a ser tratada pelo atual governo. A permissão para o acampamento em frente ao QG do Exército em Brasília, por dois meses, que serviu para treinar terroristas e dar abrigo a golpistas, é algo que precisa ser investigado e, os culpados, punidos exemplarmente. Gostem ou não de Lula, ele é, além de presidente, comandante supremo das FA. E, que eu saiba, a hierarquia é um dos principais pilares das FA. Se ela ruir, todo o edifício militar vem abaixo.
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