Direito à indignação
De tanto deparar-se com injustiças e imoralidades, chega uma hora que o cidadão perde a paciência e tem todo o direito de indignar-se. Não indo longe, vamos ficar apenas com os exemplos, mais recentes, dos precatórios e das chamadas emendas do relator. No primeiro caso, são processos judiciais que correm há anos na Justiça e que têm sentença já transitada em julgado, isto é, não têm mais direito a recurso. No segundo caso, as tais emendas se compõem de uma fatia separada do orçamento da União, cuja execução é sigilosa, isto é, representa um “orçamento paralelo” usado como moeda de troca pelo governo para conseguir votos dos parlamentares do chamado “Centrão” – que constitui a sua base de sustentação (inclusive para barrar o impeachment).
Os precatórios são incluídos no orçamento como dívidas do governo que têm dotação orçamentária própria para pagamento. A PEC apresentada pelo governo, aprovada em dois turnos na Câmara e em tramitação no Senado, visa usar a maior parte desses recursos para aumentar o “Bolsa Família”, que passará a denominar-se “Auxílio Brasil”, para R$ 400. O objetivo eleitoreiro de Bolsonaro é óbvio, caso contrário não precisaria alterar o nome do programa. Bastaria aumentar o valor. Por outro lado, muitos arriscam a morrer sem receber o que têm direito na Justiça.
O argumento assistencialista também serviu para justificar o voto de deputados (inclusive da esquerda), que, na verdade, estavam votando por uma maneira camuflada de “furar” o teto de gastos. Por muito menos do que isso, Dilma Rousseff sofreu o impeachment. Tivesse ela o apoio do “Centrão”, as tais “pedaladas” (antecipação de recursos dos bancos oficiais para cobrir despesas) seriam validadas pela Câmara e ela teria permanecido no cargo. Mas, aparentemente, Dilma não teve estômago para ceder às exigências do “Centrão” como faz Bolsonaro. Aliás, hoje, o verdadeiro poder está nas mãos do deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, expoente desse bloco político.
O caso das emendas do relator é mais um anacronismo criado com o aval do governo Bolsonaro. O mecanismo funciona assim: um determinado montante das emendas individuais é separado do Orçamento, ficando sob os cuidados do relator que, à revelia dos controles orçamentários, distribui esse valor entre seus correligionários. No esquema “toma lá, dá cá”, o recurso é liberado para aqueles deputados que se comprometerem a votar de acordo com a pauta do governo. Tudo “na moita”, longe do olhar dos curiosos. Vale destacar que esse mecanismo é fundamental para conseguir a lealdade do “Centrão”. Sem transparência e à margem da Constituição, como ficou claro na decisão do STF, que suspendeu a execução desse orçamento paralelo.
Diante desses descalabros, mesmo o cidadão mais crédulo na democracia representativa, tem o direito de indignar-se. Isso aconteceu, recentemente, com a professora (Unicamp e UFRJ) e economista Maria da Conceição Tavares, hoje com 91 anos de idade, em artigo provocador (“A terra é redonda”), publicado no site Outras Mídias. Transcrevo, a seguir, algumas de suas frases indignadas.
# Sobre os políticos: “Hoje, citar um político de envergadura com notória capacidade de pensar o país é um exercício exaustivo. O Congresso é tenebroso. A maioria está lá sabe-se bem com que fins. O elenco de governadores é igualmente terrível. Não há um que se sobressaia”.
# Sobre a classe empresarial: “Não sofríamos com essa escassez de quadros que vemos hoje. O mesmo se aplica a nossos dirigentes empresariais, terra da qual não se vê brotar uma liderança”.
# Sobre os movimentos sociais: “Não há produção do pensamento contra a mediocridade, de lado algum, nem da direita, nem da esquerda. Faltam causas, bandeiras, propósitos, falta até mesmo um slogan que cole a sociedade”.
# Sobre a juventude: “Não vislumbro saídas que não pela própria sociedade, notadamente pelos nossos jovens. Não os jovens de cabeça feita, pré-moldada, como se fossem blocos de concreto empilhados por mãos alheias. Esses, mal chegaram e já estão a um passo da senectude”.
# Sobre si mesma: “Essa minha indignação ... poderia ser atribuída a minha velhice. Mas não acho que seja não. Estou velha há muito tempo. Luto para não me deixar levar pelo ceticismo”.
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