Dançando à beira do abismo
Há tempos haviam sinais de que a tempestade vinha se aproximando. Uma a uma, as grades que protegiam a democracia vinham sendo retiradas. Muito antes do fatídico oito de janeiro de 2023, vozes importantes do empresariado, sobretudo do agronegócio, defendiam abertamente uma intervenção militar. Não havia um motivo específico para os “panelaços” que começaram ainda no governo Dilma, em 2015 e 2016. Mas as depredações a agências bancárias geraram um clima propício a golpes e “salvadores da Pátria”. A figura do Capitão Jair Bolsonaro, notório criador de casos na sua vida política e militar, era o que havia para o momento para preencher esse vácuo político.
Até então, não se falava em “extrema direita” no Brasil. Acho até que Bolsonaro nem sabia o que era isso. Teve que buscar no ideólogo Olavo de Carvalho, figura controvertida que vivia fora do país, um discurso mais radical. Fato é que o segundo mandato de Dilma foi inviabilizado, quer por suas características pessoais, quer pela voracidade do grupo de políticos que domina o Legislativo ("Centrão") em abocanhar cargos e verbas. O desgaste político da presidente atingiu seu ápice em 2016, quando sofreu o “impeachment” e perdeu o mandato, embora não tivesse os direitos políticos cassados. Assume o Vice, Michel Temer, que, diariamente, conspirava para derrubar Dilma e assumir o seu lugar.
A desilusão com o quadro econômico que se apresentava após a reeleição de Dilma, reforçou o antipetismo e favoreceu o surgimento de uma candidatura antissistema. Bolsonaro se apresentou ao eleitorado como alguém que reunia essas duas características. Essa foi a maior mentira (ou “fake News”) de todas que ele inventou. De fato, não pertencia a nenhum partido político tradicional, embora tenha transitado pela maioria deles. Mas, depois de 27 anos de mandato, jamais poderia se declarar um “outsider” da política. Porém, uma grande fatia do eleitorado acreditou nessa informação falsa e isso é o que importa. Sem Lula no páreo - àquela altura preso pela operação Lava-Jato - Bolsonaro derrotou Fernando Haddad, candidato petista pouco conhecido no resto do país, e tomou posse em 2019.
O que se sabe hoje, é que no “pacote Bolsonaro” vinham juntos os militares. Não apenas duplicando os soldos com cargos remunerados no governo, mas para garantir que ficariam no poder, vencendo ou não as eleições de 2022. Haviam várias frentes de atuação dos militares, desde o consentimento e apoio dos acampamentos à frente dos quartéis - inclusive fornecendo dinheiro em espécie, segundo delação do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro. Aos poucos, a Polícia Federal (PF) foi “ligando os pontos soltos” e indiciando, até agora, 36 pessoas, que articularam o golpe chamado pelo nome ridículo de “punhal verde amarelo”. Esse nome lembra a chamada “noite dos longos punhais”, episódio de expurgos realizada por Hitler em 1934 para eliminar adversários no Partido Nazista.
A ideia dos conspiradores era não deixar que Lula fosse diplomado presidente em 12/12/2022 e, assim, evitar a posse em janeiro de 2023. O atentado contra a sede da PF em Brasília tinha esse objetivo. Tendo fracassado, o núcleo golpista organizou as manifestações contra as sedes dos três poderes, no intuito de demonstrar que o movimento tinha apoio popular. Algo deu errado e a multidão usada como “bucha de canhão”, para usar um termo militar, saiu do controle e vandalizou os prédios públicos.
Ao prender centenas de vândalos, a PF achou o corpo, mas faltava ainda a cabeça, isto é, chegar nos mandantes. Á medida que as provas foram aparecendo, inclusive com a descoberta de um plano para governar o país através de uma junta militar, após a derrubada da democracia, o quebra-cabeças começou a ser montando. O envolvimento de oficiais de alta patente, os chamados “Kids pretos”, ficou claro. Eles imaginaram convencer os comandantes do Exército, Aeronáutica e Marinha a aderir ao golpe. Porém, exceto pelo último, os demais mantiveram uma posição legalista.
Enquanto escrevo este artigo, pela primeira vez na história da República, um general de quatro estrelas (Braga Netto) é preso sob acusação de prejudicar as investigações da PF. Enfim, o golpe foi desbaratado, mas existe mais coisas ainda a revelar, como a participação do agronegócio e de parlamentares. O ano de 2024 ficará marcado como aquele em que a nossa democracia dançou à beira do abismo e, por pouco, não sofreu outro golpe militar. Isso só não aconteceu pela existência de grades de proteção da própria democracia, sobretudo pela ação do STF, e pela incapacidade dos golpistas (generais da reserva e oficiais de menor patente) de convencerem os generais da ativa em participarem da ação.
Em resumo, além da punição exemplar aos golpistas é preciso uma profunda reforma nas Forças Armadas FA), retirando qualquer referência às FA como "Poder Moderador" dos demais Poderes, cujo papel deve ser limitado apenas às suas funções constitucionais. Cabe às FA defender a democracia e jamais ataca-la.
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