Bolsa-Família e as bets
Milton Friedman, economista, ganhador do prêmio Nobel, líder da chamada Escola de Chicago, ficou mundialmente conhecido pela sua tese de que a inflação é sempre um fenômeno monetário e pelo estudo histórico das causas da Grande Depressão da década de 1930. O que poucos sabem é que ele foi um grande defensor da tese do imposto de renda negativo. No Brasil, o precursor desse debate, autor da proposta da “renda básica da cidadania”, é o economista e político Eduardo Suplicy.
Um imposto de renda negativo destina-se a criar um sistema único, que não só iria pagar o governo, mas também cumprir o objetivo social que é o de certificar-se de todos terem um mínimo existencial para viver. Em economia, um imposto de renda negativo é um imposto progressivo sobre a renda, através do qual pessoas de baixa renda receberiam pagamentos suplementares do governo, em vez de pagar impostos. Este é o embasamento teórico dos programas de transferência de renda, como o Bolsa-Família.
Uma crítica comum é que o programa de renda mínima pode reduzir o incentivo para o trabalho, uma vez que os seus destinatários iriam receber um valor mínimo de salário garantido e isso poderia servir de desestímulo para procurar emprego. A produtividade da economia seria afetada negativamente, por causa disso. Além do mais, nada garante que o recurso não seja desviado de sua finalidade, como está acontecendo com os jogos de apostas eletrônicas (bets). Por essa razão, no governo FHC, o recurso era vinculado à sua finalidade, como por exemplo o Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação etc.
Segundo dados divulgados pelo próprio Banco Central, em agosto de 2024, o Bolsa Família repassou R$ 14,1 bilhões para mais de 20 milhões de beneficiários. O valor médio por família pago no mês foi de R$ 681,09. Dos 20 milhões de beneficiários, 5 milhões fizeram apostas no mês passado. O valor gasto por pessoa foi de R$ 100, sendo que 70% são chefes de família, ou seja, quem de fato recebe o dinheiro transferido pelo governo.
Cerca de 24 milhões de pessoas físicas participaram de jogos de azar e apostas, realizando ao menos uma transferência via Pix para essas empresas, somando R$ 21,1 bilhões em apostas em agosto, via Pix. Ao longo deste ano, os valores mensais de transferência bruta para as bets variaram entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões.
O apelo ao enriquecimento, por meio de apostas, provavelmente seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira. A maioria dos apostadores tem entre 20 e 30 anos. O valor médio mensal gasto com bets aumenta conforme a idade. Enquanto os mais jovens gastam em torno de R$ 100 por mês, a cifra pode ultrapassar R$ 3.000 mensais entre os mais velhos (de mais de 60 anos).
O levantamento do BC considera apenas 56 empresas, só por meio de Pix; fora cartão de crédito e outros meios de pagamento. O cadastro do Ministério da Fazenda registra 193 bets, mas muitas estão irregulares, inclusive patrocinadoras nas camisetas do Grêmio e do Juventude aqui no RS. O governo deu um prazo de 10 dias para as bets se adequarem à legislação e proibiu o uso de cartão de crédito em apostas esportivas(bets) e jogos online, a partir de janeiro de 2025.
Consciente de que essa medida é insuficiente, o Ministério da Fazenda está elaborando uma legislação mais rígida para regulamentar essas bets, que não pagam impostos e sequer tem representação no Brasil. Muitas inclusive tem endereço em paraísos fiscais. A Era digital não respeita os limites dos Estados nacionais e atropela o próprio Poder Judiciário, como ilustra a arrogância do dono da plataforma “X”, Elon Musk, que se recusou a cumprir decisões judiciais e ainda fez provocações ao ministro (do STF), Alexandre de Moraes, mesmo após multado e ter o seu serviço bloqueado na rede.
Até agora, por absoluta incompetência do governo em verificar o que se passa “debaixo do seu nariz” nas redes sociais, as bets “deitaram e rolaram”, trazendo como efeito indireto a perda de eficácia do Bolsa-Família. Daqui para a frente, essa será a discussão que interessa, ou seja, como aperfeiçoar o programa, por um lado, a fim de evitar a perda de finalidade e, por outro, sem retirar do beneficiado a liberdade de decidir sobre o seu próprio gasto?
(artigo publicado no Diário de Santa Maria, em 02/10/2024)
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