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A tragédia de Porto Alegre

Foto do escritor: José Maria Dias PereiraJosé Maria Dias Pereira

Tenho forte ligação afetiva com a nossa capital. Lá nasceu minha filha e foi também onde trabalhei e estudei antes de vir morar em Santa Maria, após passar no concurso para professor da UFSM. Sempre tive um pé em POA, visto que nunca me desfiz do pequeno apartamento onde formei minha família. Mantive sempre relações próximas com a UFRGS, onde fiz mestrado, e com a FEE, onde iniciei a carreira profissional como economista.

 

Muito jovem, trabalhei (com carteira de menor) num banco na famosa Rua da Praia (ou Rua dos Andradas, nome que quase ninguém usa). Esse local, para quem não conhece a capital, ficava cerca de uma quadra da não menos famosa Praça da Alfândega - pulmão verde do centro porto-alegrense. Até hoje, o local é um convite para desfrutar da sombra de suas árvores, acomodado nos bancos que dão um breve alívio para os pés cansados da caminhada. Andar pelo centro antigo da cidade é um exercício obrigatório para o visitante ou para matar a saudade de quem já morou lá. Não esquecendo que é "na praça" que acontece, todos os anos, a concorrida feira do livro. Caminhando mais um pouco na orla do Guaíba, dá para observar o famoso por do sol...

 

Porém, olhando hoje o centro histórico da capital gaúcha todo alagado, tenho muitas lembranças de um local que não existe mais. Só no perímetro próximo da praça, havia quatro cinemas. No final da tarde, após o expediente, havia filas para assistir a primeira sessão. Lembro, como se fosse ontem, de filmes clássicos que assisti naquela época. Agora, não existe mais nenhum cinema: a fachada foi aproveitada pela construção de um banco e um shopping mais adiante.

 

Próximo dali, na Rua Caldas Júnior, ficava a sede do jornal Correio do Povo e da rádio Guaíba, veículos de maior circulação e audiência naquela época. Quem passasse por ali, poderia até sentir o cheiro de tinta fresca que era emanado das rotativas do jornal. Na redação do jornal, ficava a nata do jornalismo. Dentre eles Mário Quintana – escritor, tradutor e editor do caderno H da edição dominical. Era preciso ter fôlego para escrever manuscrito e depois datilografar os textos antes da diagramação. Solteiro convicto, Mário tinha todo tempo do mundo para escrever e esse foi o seu ofício a vida inteira. Embora fosse também um excelente humorista, como bem lembrou, certa vez, L.F. Veríssimo.

 

Ao assistir, repetidamente, as cenas da tragédia de Porto Alegre a primeira pessoa que lembrei foi Mário Quintana. Imagine como ele iria reagir diante da devastação da cidade. Ele amava aquela cidade. Na verdade, ele se sentia parte dela. Tanto que o hotel onde se hospedava virou a casa de cultura que hoje leva seu nome. Anos mais tarde, já trôpego pela idade, ainda era possível ver Mário, com uma sacolinha debaixo do braço, atravessar a praça. Para Mário, aquele local era um solo sagrado, como provou no poema “O mapa". Como podem ter deixado essa tragédia acontecer? Essa é a pergunta que todos fazemos, inclusive Mário, que continua passeando pela praça, invisível, delicioso.


O Mapa


Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo...

(E nem que fosse o meu corpo!)


Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei...


Ha tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Ha tanta moca bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei...)


Quando eu for, um dia desses,

Poeira ou folha levada

No vento da madrugada,

Serei um pouco do nada

Invisível, delicioso


Que faz com que o teu ar

Pareça mais um olhar,

Suave mistério amoroso,

Cidade de meu andar

(Deste já tão longo andar!)


E talvez de meu repouso...


(Mário Quintana)



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