A memória da inflação
Se você tem por volta de 30 anos de idade, é um felizardo. Primeiro, porque é jovem e tem a vida inteira pela frente. Segundo, porque você tem a sorte de não ter vivido em uma época de inflação. Se você não é economista, é bom saber que inflação é um processo de alta generalizada dos preços. Até agora, na verdade desde 1994, nós vivemos uma situação de estabilidade de preços: alguns produtos aumentam de preço, por desajuste entre oferta e demanda, enquanto outros caem de preço, compensando, no índice geral, os preços que aumentaram. Tem-se, como corolário, uma tendência de estabilidade.
Se você tem mais de 30, presenciou ou ouviu seus familiares falarem, de como era a vida durante um processo inflacionário. Com certeza, não quer viver isso novamente. Imagine uma inflação mensal de 50% e anual de 5.000%. Esses eram os números em junho de 1994, mês de lançamento do Plano Real. Os economistas chamam isso de hiperinflação, fenômeno que aconteceu na Alemanha, Áustria e Hungria, entre 1921 e 1923 e, inclusive, foi um dos fatores que favoreceu a ascensão política de Hitler. Difícil imaginar como era a vida nessa época conturbada no Brasil pós-ditadura militar. Parece mentira, mas foi real. Um plano econômico atrás do outro e o saldo era sempre o corte de três zeros na moeda, o que fazia a inflação subir de patamar.
O encerramento do ciclo militar, em 1985, deixara o país com uma dívida externa impagável, recessão e à beira de uma hiperinflação. As medidas ortodoxas de corte da demanda – aumento dos juros, escassez de crédito, etc. – não surtiam efeito. A própria teoria econômica era objeto de questionamento, porque, em princípio, recessão e inflação não poderiam acontecer juntas, já que a recessão deveria provocar deflação (queda de preços), como ocorreu na Grande Depressão de 1929. Estávamos diante de um acontecimento de escala mundial – a “estagflação”.
Enquanto o mundo acadêmico ainda se encontrava dominado pela controvérsia keynesianos versus monetaristas, nascia uma visão crítica dessas duas escolas que, por esse motivo, foi chamada de “heterodoxa”, que tinha como “carro-chefe” a teoria da inflação inercial. Em fevereiro de 1986, sem nenhum tipo de “aviso prévio”, foi implantado o “plano Cruzado”, que mudava o nome da moeda nacional e congelava preços e salários. Foi o primeiro de uma cronologia de planos econômicos que fracassaram, exceto o último (Plano Real).
A tese defendida por essa corrente dissidente de economistas, com base nas hiperinflações dos anos 1920, era a de que, na ausência de choques inflacionários, a inflação se move por inércia, isto é, os agentes econômicos tem uma “memória” da inflação passada que projetam para o futuro. Ninguém quer chegar atrasado no repasse de preços e ver seu concorrente na frente. Em parte, porque as empresas temem ser surpreendidas com preços atrasados, em caso de novo congelamento de preços. O que o Plano Real fez foi “quebrar” as expectativas inflacionárias, a chamada “indexação” de preços e contratos. O leitor interessado encontra uma cronologia dos planos de estabilização no meu livro Manual de Economia Brasileira (Editora UFSM).
Para que a política de “desindexação” da economia dê certo, é preciso que exista uma moeda forte desejada por todos. A criação do “real”, com valor discricionário equivalente ao dólar, cumpriu essa função. Ou seja, o dólar foi a “âncora” do Plano Real.
Hoje, a principal ameaça à estabilidade é a desvalorização da moeda nacional frente ao dólar. Ou o governo controla a alta do dólar, ou a “casa cai”, isto é, a confiança na moeda nacional, duramente conquistada, e após décadas de sucesso, estará irremediavelmente perdida. O problema é que, faz tempo, o país navega à deriva. No leme se encontra um certo capitão Bolsonaro que não entende nada de cartas náuticas e, como ele admite, nem de economia. Tinha total confiança no seu Imediato, marinheiro Guedes, que jurou leva-lo a porto seguro. Ultimamente, porém, anda desconfiado que o seu auxiliar poderá afundar o navio.
Publicado no Diário de Santa Maria em 03/11/2021
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